[ Fiz meu primeiro perfil há uns dois meses mais ou menos. Tive sorte de escrever sobre uma personagem não só fascinante e cheia de histórias, mas ainda muito querida e disposta a me contar tudo. O texto sobre a Ivi foi uma delícia de fazer. Pena que só agora ele pôde vir pra cá.]
A conheci por causa do Vodca
Barata, seu blog e seu maior meio de expressão para o mundo. Não me lembro ao
certo como cheguei no diário virtual, mas posso dizer que uma vez lá, me tornei
uma de suas fiéis leitoras; ou melhor “leitorinhas”, como carinhosamente nos
chama. Culpei minha admiração ao modo corajoso como Ivi escrevia, como tratava
de qualquer coisa sem cerimônia alguma. Palavras inventadas; gírias bonitinhas
e desavergonhadas; o vocabulário “vodcal”, ou “ivetal” foi rapidamente criando
um vínculo entre nós. Em uma época na qual todo mundo tem a mesma chance de se
mostrar, Ivi (com seus bem vividos 29 anos) fez milhares de fãs – eu uma delas
– sem querer, querendo. É porque a moça é leonina. Ser o centro das atenções
não foge de suas suadas expectativas. Dividir a vida, se expor, estar em
evidência é a forma mais legítima de se colocar no mundo. E foi bem por isso,
que em 2005 aconteceu o blog. “Comecei a escrever pra falar de um menino que me
traiu com uma amiga minha. Hoje eu vejo que era só um bafo, mas quando passei
por aquilo parecia o maior drama da vida; e eu soltei tudo ali.”
Naquela
época, ela cursava o último ano do curso de jornalismo e trabalhava como
repórter, escrevendo para o caderno de cultura do maior jornal da capital pernambucana.
Mesmo assim, quando soube que Glória Kalil precisava de uma fotógrafa
freelancer para cobrir as semanas de moda daquele ano, “Enviei uns retratos que
tinha feito, entre eles o do meu primeiro Leandro, e nem disse nada que era de
Recife. Fiz a louca e ela me quis”. As semanas de moda acabaram e foi convidada
para ficar na equipe. Passou a trabalhar no Chic, o site de moda e
comportamento que leva a assinatura de Glória Kalil. Para isso, abandonou a
cidade natal sem pesares e, afoita, se mudou para São Paulo – o que queria
desde sua primeira visita aos 10, quando veio à cidade acompanhar a mãe durante
o mestrado. “Sou apaixonada por São Paulo, me sinto em casa. Se precisasse
escolher um lugar no Brasil pra viver, seria lá.”
Ivi diz
“lá” porque a grande metrópole já não é mais oficialmente seu lar “agridoce”
lar. Durante nossa conversa, ela está em Recife, mas na verdade, só a trabalho.
Fica de maio a setembro. Desde o começo do ano mora em Berlim, e é pra Alemanha
que vai voltar daqui mais ou menos dois meses. Mas essa é uma história que traz
muito mais histórias, e pra chegarmos nela, outras merecem ser contadas.
Começamos
nossa chamada usando o teclado, digitando tudo mesmo. Apesar de ela ter pensado
que conversaríamos dessa forma, ela topa fazer por microfone e vídeo. Aparece
por cinco segundos, percebe que minha câmera não mostra a imagem e logo desliga
a sua também. Não acredito que tinha problema em se exibir, de jeito nenhum, só
penso que não achava justo se não fosse um tête-à-tête. Apesar de ter
trabalhado quase quatro anos com moda, com certeza é a menina menos afetada
possível com essa coisa da estética. Logo no começo da entrevista, me conta que
antes de fazer seu primeiro trabalho pro Chic, era uma “manguegirl, que gostava
de Chico Science e passava o dia de chinelo”. Na bolsa, carregava só leite de
colônia e uma pomada para os cabelos que eram bem curtos. Não entendia nadinha,
muito menos se interessava por alguma coisa do mundinho. Aprendeu a sofridos
solavancos. “Primeiro veio o deslumbre, depois eu queria fazer parte daquilo,
no fim das contas salvei os amigos que fiz e deixei a moda, não era pra mim
mesmo.”
A moda,
acidentalmente, não só a trouxe pra São Paulo, mas tornou possível seu trabalho
como fotógrafa. “Em Recife eu nunca conseguiria ganhar a vida fotografando;
pelo menos não o que eu gosto de fotografar. São Paulo me possibilitou isso.
Era o único lugar no país onde eu podia crescer. Querendo ou não, comecei
fotografando moda.” Ivi fez dezenas de amigos no meio. Também gritou e bateu o
pé quando precisou. O Vodca foi um microfone potente quando ela quis se rebelar
contra os irritantes e tão reais “manuais” da moda. Foi também vitrine de uma
de suas séries mais polêmicas, a Fashion Victim – na qual auto-retratos de tom
ora agressivo, ora sarcástico, foram toscamente rabiscados com a ferramenta
Paint do Windows. “Ali eu queria expressar como me via diante daquele esquema
todo.”
Romântica incurável, teatral até, expôs também seus amores. E quando fala deles, se rende totalmente. Usa palavras, usa fotos e vídeos e se usa pra expressar o inexprimível. Pra mim, seus melhores trabalhos são os apaixonados. Fotografias lindas, de luz cor de rosa e alaranjada, muito femininas, mas muito fortes também. Textos sangrentos, mas ternos. Penso que devem ser tão fortes e tão vivos porque são extremamente reais. Pra ser piegas, mas justa, são viscerais.
Quando se mostra, Ivi não poupa nada e nem ninguém, muito menos a si mesma. Rasga o peito e deixa sair. Bem ao modo de seus heróis. E quando começa a dizer seus nomes ( “Frida Kahlo, Goya, Madonna, Patti Smith, Leonilson e Nan Goldin, Beyoncé, Robert Mapplethorpe, Dostoiévski, Tchekov, Franz Liszt”), denuncia na hora com quem estou lidando. E é bem assim, Ivi tem a sensualidade ordinária de Beyoncé, mas a elegância sabida de Mapplethorpe; tem a força e rigor de Dostoiévski e a ousadia e os flashes de Madonna; é passional como Frida e tem o mítico de Goya. Por isso, quando ela me conta seu filme preferido, tudo faz mais sentido ainda; é Uma Linda Mulher.
[The thing is Mr.
Doctor, that you don’t know what I have because x-ray shows no soul. March,
2008]
Sonhadora
como a personagem de Julia Roberts em um dos maiores clássicos da sessão da
tarde, Ivi tem nome e história que poderiam servir pra um livro, ou quem sabe
dois, três. O nome, na verdade, veio de um: Os
irmãos Karamázov, do autor preferido, Dostoievski. Culpa da mãe, que se
apaixonou por Adelaide Ivânovna, personagem
chave da história, e quis passar o karma pra filha querida. Funcionou, Ivi ama
o nome, e ama o karma. Outro motivo que a faz gostar tanto do nome é porque o
divide com sua avó materna, também Adelaide. Mulher “foda, vencedora”, é uma
das suas maiores musas, e sua modelo preferida. Diz que gosta de fotografar a
avó porque funciona como um auto-retrato. Mais uma vez, como boa leonina, adora
tanto a “vovó” porque se vê muito nela. “Somos muito parecidas, no jeitinho
mesmo. As duas falantes, as duas teimosas, o modo mandão e grosso de tratar...”
Quando pergunto se a menina falante tem uma palavra preferida, diz que agora é “vincitrice, que é vencedora, em italiano. O som da palavra é meio estralado e descreve exatamente o que denomina. Quando ouvi pela primeira vez parecia barulho de passarinho”.
Passarinha e inquieta, já viajou um monte. Além do
português, fala
inglês, espanhol, alemão e “italiano passivo (entendo, mas respondo em
inglês)”. O italiano passivo aprendeu em um mochilão que fez em 2009. E a
“mochilagem” lhe rendeu muito mais que um italiano capenga e bem humorado. Em
um fim de tarde em Lisboa, no seu primeiro dia de viagem, conheceu o “coração
de gelo”; e no dia seguinte, embaixo do travesseiro: “Querida Ivi, ontem à noite,
você tocou minha alma. Talvez nós nunca nos
veremos de novo, mas é claro que nos veremos no meu reino dos sonhos” - (Dear Ivi, last night you touched
my soul. Maybe we will never see us again
(sic), but of course we will in my kingdom of dreams).
“Coração
de gelo”, a.k.a Armin, é de Colônia, na Alemanha. Um e noventa, longos cabelos
dourados, o “boy da vida” e um dos motivos de Ivi escolher morar em Berlim. Na
verdade, ama a cidade, que lhe inspira de uma forma única “tenho vontade de
fotografar todos os dias quando estou em Berlim. Mas tem aquela coisa, a gente
ama tudo que é novo. É impossível você continuar apaixonado por algo que passa
a conhecer profundamente”.
O outro
forte motivo, que não supera a beleza de Berlim ou o amor por Armin, mas a
instiga de uma forma única, é a fotografia. Ivi saiu mesmo de São Paulo pra
estudar fotografia na Ostkreuz; Instituição respeitada mundialmente quando se trata do assunto.
Conquistou uma das 15 vagas anuais, destinadas a cerca de 300 inscritos, que a
agência oferece para uma espécie de graduação em fotografia.
É aqui
que a bagunça Recife/Berlim retorna à história. Devido a um projeto anual,
exigido pela Ostkreuz, ela
está passando quatro meses ente Sergipe e Rio Grande do Norte à procura de
personagens que caibam no seu tema: violência de cunho sexista contra a mulher.
Fotografar na região onde nasceu e cresceu foi idéia de seu orientador e
corresponde à primeira de três etapas do trabalho – Berlim e Suécia são as
outras duas. Daí deve sair sua obra-prima. It’s ok to be a boy era só um
possível nome quando conversamos. Na última semana publicou no blog que a
frase, que pertence a uma música de Madonna, seria mesmo o título ideal.
Para
Ivi, fazer fotos de meninas que sofreram algum tipo de violência é muito mais
que encontrar histórias doloridas, ou tentar através de imagens traduzi-las.
Esse é seu primeiro trabalho com foto-reportagem. É, ao mesmo tempo, o primeiro
trabalho que não parte de motivos leves ou despretensiosos. É coisa séria, “de
cunho político”. E fica mais séria quando ela me conta o que de fato eu não
imaginava: há três anos foi vítima também. Então esse é principal motivo de ter
escolhido o tema? “Um dos principais. Queria encontrar meus pares. Não me ver
mais como uma ‘freak’”. Esse foi um fator que ajudou a delinear o perfil das
mulheres que escolheu para fotografar “Estou em busca de meninas de
classe média, com alto nível de escolaridade, fora do obsoleto perfil da
‘mulher em situação de risco’ (preta e pobre, basicamente). Odeio esse termo e
acredito que uma mulher está em situação de risco simplesmente por ser mulher”.
Continuamos nesse assunto e, sem
surpresas, começa a se mostrar uma Ivi emputecida com tudo que está tratando
nos seus últimos dois meses de nordeste. Indignada me apresenta pensamentos dos
quais eu nunca tinha gastado mínimos minutos pra refletir. Questiona “a educação
que nossos homens estão recebendo” e me diz que quer mostrar que o panorama é
outro. Os meninos que praticam a violência têm o mesmo nível social e econômico
das meninas, “são seus primos, seus chefes, o amigo da universidade”. “O
problema está nos agressores, independentemente de quem são, querem a mesma
coisa. E aí, eles apresentam um mesmo perfil.”
Empolgada, desembesta a falar e
nossa conversa dura quase duas horas. Com duas falastronas, podia virar a
madrugada, se não fosse pelo yoga dela na manhã seguinte e o fato de que sempre
dorme cedo.
Interrompo. Deixei pelo menos uma dúzia de perguntas por fazer – falei
pra ela, eu já sabia todas aquelas respostas. Sua vida livro aberto e sua
personalidade leonina já tinham me contado tudo.